quinta-feira, março 06, 2014

Demasiado Sidónio.

É provável que hoje escreva para sacudir a morte, esse triste recado que sempre nos chega quando se nos morre alguém próximo. Mas é preciso. Preciso.
Há coisas que alegram a vida de quem fica vivo. No caso do Sidónio, tantas memórias, tantos pormenores escoados pelos dias e que agora se erguem, trocistas, consoladores. É a eles quer me agarro, náufrago de mim mesmo. Essas cumplicidades quotidianas que tantas vezes subestimamos até ao dia em que desaparecem, sem remédio ou salvação.
O mesmo cumprimento, trocadilho mal amanhado mas feliz, ao vê-lo chegar invulgarmente antes da hora aos compromissos que tínhamos nas residências artísticas do Povo Lisboa: «Hoje chegaste Sidónio. É melhor do que chegar Tardónio». E isto vezes sem conta, e sempre ríamos porque sabíamos que tudo se iria repetir e era bom.
Os pormenores, as minhas tábuas que mal flutuam: as conversas displicentes e abandonadas ao copo de vinho, o doce sotaque alentejano. As avaliações discretas e românticas de dois apreciadores confessos dos encantos femininos. As suas mansas picardias, ao levar-me a falar das minhas estrondosas derrotas amorosas ou parcas conquistas. As conversas quando me levava a casa depois do fado, no “Sidóniomobile”, um Smart marginal que desafiava por vezes as regras de circulação em Lisboa e que transportava três passageiros amigos: eu, o condutor e a sua guitarra portuguesa, adormecida no pequeno porta-bagagens.
O olhar cansado de muita vida. O olhar brilhante quando certa vez apareceu no Povo, inesperadamente, um mestre do cavaquinho do choro, companheiro de Pixinguinha e já octogenário. Foi amor à primeira vista para o Sidónio: “O velho toca como o caraças, o velho toca como o caraças”. E lá deixou tudo o que tinha a fazer para ouvir histórias e aprender com o “velho”. O Sidónio respeitava os Mestres, procurava sempre superar-se através do que lhe podiam ensinar. E a isso chama-se nobreza.
Pequenas vitórias, egoístas. O dia em que chego ao estúdio, invariavelmente atrasado e com tudo à minha espera para gravar. Na mão, um papel amarrotado e gatafunhado com a letra do que viria a ser o Inventário da Melancolia, cantado pela Nádia Leirião, com uma extraordinária música dele (e que podem ouvir aqui). A forma como entrou para o “aquário” no estúdio, esquecendo-se que os microfones estavam abertos e confidenciando ao João Penedo, sem perceber que eu o ouvia: «O sacana escreve bem». A gargalhada geral, a minha secreta vaidade.
Estou agora mesmo a ouvir uma música que o Sidónio me pediu para preencher com palavras. Não o conseguirei fazer agora. Mas fá-lo-ei. Por enquanto o que estas notas me trazem é uma indignação triste: Foste Sidónio,  meu amigo, foste-me Sidónio demais.



segunda-feira, janeiro 20, 2014

Subsídio para uma «cultura de direita».

Uma excelente (e por isso mesmo, discutível) análise da existência de uma «cultura de direita», da pós-revolução até hoje, efectuada pelo essencial António Araújo.
Numa altura em que se fazem doutoramentos sobre O Independente ou a revista Kapa (publicações em que participei activamente) esta é talvez a análise mais lúcida sobre um fenómeno editorial quase geracional e certamente mais estético do que de combate ideológico (no caso do Caderno 3 do Indy ou da Kapa), impossível de dissociar do zeitgeist sociocultural mas que ao mesmo tempo o venceu de forma improvável.

quarta-feira, janeiro 08, 2014

Blue Monday

O que nos dão as canções, ou mais importante – o que é que nós lhes damos? Tudo o que temos, o que tivemos, o que queremos ter. Nos casos mais radicais, o que queríamos ser. Algumas canções entregam-nos uma ontologia utópica de nós próprios, que só por sabê-las, cantá-las ou dançá-las, acreditamos que é verdade o que nós pensamos que somos. Pessoalmente sinto tanto essa necessidade que descobri no fundo de mim uma vocação para letrista que me satisfaz mais a mim do que a quem ouve ou canta o que escrevo.

Blue Monday, dos New Order, é uma dessas canções que sempre me devolvem o que gostaria de ser e algum do tempo em que o tentei. Não é uma questão de nostalgia: danço-a hoje como a dançava quando foi lançada, em 1983 – com a diferença de que tenho a profunda alegria de não estar em 1983. Mas é fácil saborear aquela batida irresistível, a letra triste e resignada a contrastar com a aparente contradição da vontade de dançar, símbolo do caminho musical que a banda queria tomar.
Depois, o mito confundido connosco: a tristeza assumida como uma das belas-artes, o imaginar a banda recolhida no estúdio em silêncio e em quase ascese.

Felizmente, existe sempre alguém que nos prova que é mentira. Este pequeno documentário sobre o making of da canção choca os fieis como eu: então os rapazes andavam em noitadas nos clubes de  Manhattan ? Inspiraram-se em Sylvester? A tão inconfundível batida está presente numa canção anterior da Donna Summer? O Bernard Sumner diz que «não é uma canção, é uma máquina que faz dançar»? Mas, mas...O que aconteceu ao meu mundinho lírico e vivido das gabardinas e olhos no chão, da melancolia de papel que vestia sempre que dançava isto?

Este documentário é maravilhoso e perigoso. Tal como quando nos é revelado um  truque de ilusionismo, fica sempre um levíssimo travo de desapontamento. Mas a magia fica intacta, senão mesmo reforçada. O que aconteceu, aconteceu e foi uma sorte e lindo para quem lá esteve ou abriu as portas da vida ao que estava a acontecer. E depois, há esta frase do genial designer gráfico Peter Saville que tudo define:«Ninguém estava ali para fazer dinheiro. Estávamos para fazer o que queríamos». Não vejo maior privilégio.


[para ver o documentário: http://www.svtplay.se/video/1681962/del-2-av-6-engelsk-text-english-subtitles ]

segunda-feira, dezembro 30, 2013

Notas de 2013 (visto por dentro)



I sing what was lost
And dread what was won
W.B.Yeats


Por um brevíssimo instante, contrariar aquilo em que acredito e a minha natureza: só por isso olhar para trás. Ver as pegadas que marcaram o ano que passou, perceber sem nostalgia as horas boas e más, os caminhos que se perderam, o pouco que se ganhou. Fazer um álbum de recortes precário e biodegradável, só para agradar o espírito da quadra, feito de balanços e fins de ciclos fictícios mas em que queremos acreditar. Deixar de lado a certeza cínica de que o tempo é a mais nefasta criação humana e, já refugiado no abrigo do instante-agora, poder abusar dos sumários dos dias em que combatemos ou gozamos. E perceber: este ano foi igual a todos os outros. Choro, risos, desejos, frustrações, desilusões, dificuldades e até oásis de uma perigosa felicidade.

Dirão: sobretudo dificuldades. Sim, sim. Muitas e de vários géneros, incluindo algumas que poderiam ter sido evitadas ou abreviadas. Outras que permanecem e são comuns a tantos, como a ausência de trabalho e dinheiro. Tempos dificeis e sempre inesperados. Mas não é isso o que acontece a quem tem o desplante de estar vivo? É essa teimosia militante que atravessa os dias, sugando tudo o que encontra pelo caminho e juntando argumentos e forças para discutir a injustiça inevitável que é a morte.

Mesmo assim, preferia ter abdicado das filosofias estóicas e ter tido uma vidinha mais descansada. Não aconteceu. Pelo contrário, muitas vezes fui engolido pelo pior de mim, o que pareceu reforçar de maneira sentida e inexpugnável a minha baixa consideração pela natureza humana, a que por tragédia e sorte pertenço.

Mas depois: no meio do escuro, das dúvidas, do cepticismo seguro, voltar a embater naquilo que nos esforçámos por negar. Dito de outra maneira: sem aviso nem perdão ser incluído nos milagres que persistem em ser reais. Essa a maçada: o mais incrível dos milagres é o facto de existirem, como diria o Padre Brown de Chesterton. E desafiando toda a suave misantropia que adoptei como trincheira, eis que a amizade invadiu e conquistou todas as cidadelas que erigi à custa da tristeza.
Uma invasão doce, inesperada, quotidiana. Amigos novos, que proclamámos nunca mais fazer, riem-se destes preconceitos balofos e atacam a alma e o coração, sem apelo nem agravo. Nem sequer há cerco: há uma marcha sorridente, um apoio incondicional quando caímos feridos de descrença ou melancolia.

Não estou nem nunca estarei preparado para isto. Há muito que encontrava santuário apenas na antiguidade das amizades, que nunca me desiludiram. Mas ser receptor destes milagres afectivos mais uma vez me deixou desnorteado. A minha tímida e pobre resposta foi escrever uma frase para um postal, e que declara «Não há amores como os que estão», manifesto inequívoco sobre a força e importância do hoje.

E é do hoje que vos escrevo, este hoje onde vivem agora intrusos adoráveis que já não dispenso, que me ajudam a aceitar o mistério da amizade consequente. Há uns anos citava isto de D. Francisco de Portugal:« Digamos porque não se chama ao amor amizade. Entre as duas coisas há esta diferença: o amor é uma paixão que tem mais de desejo que de prazer; e a amizade é uma afeição reverente ou um amor envergonhado, que tem mais de prazer que de desejo. O amigo pretende para o que sempre ama, e o amante para o que pode deixar de amar. Um cuida de si, outro descuida-se de si».

Hoje, hoje mesmo, confirmo o que citei e tenho como única ambição conseguir conservar por perto estes anjos improváveis que insistem numa dádiva que já me é irreversível.
Bom ano. Afinal.



quarta-feira, novembro 27, 2013

Note to self by another

«Em breve esquecerás todas as coisas; em breve todas as coisas te esquecerão.»

Marcus Aurelius, Meditações


Lamento de Don Juan no Inferno

Demasiado amor, demasiadas mulheres, demasiado belas. Tudo demasiado tarde.

Vista de um café

Lisboa, dez da manhã. Uma rapariga atravessa o frio num passo decidido, o olhar perdido num ponto qualquer do horizonte. Andará pelos vinte e muitos anos, pelo que se pode depreender do rosto sério que só o cabelo loiro em desalinho parece desafiar. É bonita.
Na direcção dela vem um homem, aparentando a mesma idade. Fala animadamente com um casal que caminha ao seu lado. A rapariga cruza-se com este grupo e de súbito o homem aborda-a, delicadamente. A rapariga retira o olhar desse lugar misterioso e dirige-o para o homem, surpreendida. Logo a seguir, o rosto desfaz-se num sorriso e beija-o nos lábios ao de leve. Era o seu marido. Todos prosseguem os seus caminhos um pouco mais felizes.
O mundo ainda está cheio destes encantos, a magia das pequenas coisas